Apontamentos sobre o plano de recuperação apresentado por credores
Parte essencial do mecanismo de recuperação judicial é a apresentação do plano de reestruturação. Nele se apresenta a corporificação das medidas que serão adotadas pela sociedade devedora na busca do soerguimento da empresa, ou seja, a superação da sua crise econômica.
Até a reforma trazida pela Lei 14.112/2020, a proposição do plano de recuperação era atribuição exclusiva da devedora, cabendo aos credores, unicamente, aprová-lo, rejeitá-lo ou, eventualmente, sugerir modificações, mas neste último caso sempre com a necessária concordância da recuperanda (art. 56, §3º da Lei 11.101/05).
Agora, a partir da mencionada reforma, os credores passam a ter legitimidade para apresentação do chamado “plano alternativo” em duas hipóteses: (i) caso não se tenha deliberado sobre o plano proposto pela devedora dentro do prazo previsto no art. 6º, §4º (art. 6º, §4º-A) e (ii) caso o plano proposto pela devedora seja rejeitado em assembleia geral de credores (art. 56, 4º).
Esse procedimento é similar ao do direito estadunidense. No sistema do Bankruptcy Code norte-americano [1], em regra, o devedor tem a prioridade para apresentar, no prazo de 120 dias, um plano de reorganização. Caso não o faça dentro desse prazo, ou o plano não tenha sido aprovado em até 180 dias após a concessão da order of relief, os credores adquirem legitimação para apresentação do plano alternativo [2].
Em síntese, os dois dispositivos acima mencionados (art. 6º, §4º-A e art. 56, §4º) autorizam que os próprios credores apresentem um cronograma de pagamento e estabeleçam ferramentas de reorganização econômico-financeiras do devedor, o que, em tese, seria uma última alternativa antes da convolação em falência e a consequente liquidação da sociedade empresária (ou empresário). Tais inovações, de um lado, são elogiáveis por atribuírem maior poder de participação aos credores na condução dos seus interesses comuns; o modo como estas disposições foram tratadas, no entanto, traz consigo outros problemas ainda não resolvidos pela LRF.
As medidas de cunho societário, por exemplo, como aumento de capital, cisão, venda de UPIs etc. afetam o direito dos sócios, o que, em uma sociedade de capital pulverizado (ou simplesmente com uma grande quantidade de quotistas/acionistas) pode ser altamente problemático, pois suporiam, ao menos em tese, que deliberações interna corporis fosse tomadas antes da proposição e deliberação sobre o plano em si.
Observe-se, a propósito, que o disposto no parágrafo 7º, do artigo 56 da LRF, que trata da capitalização dos créditos - inclusive com alteração do controle - prevê o direito de retirada dos acionistas “dissidentes”. As hipóteses de retirada, no entanto, ao menos em tese (e segundo a Lei 6.404/76) não se resumem a isto. A capitalização de crédito, diga-se, é mecanismo muito utilizado em planos apresentados pela própria devedora, mas é preciso que, em qualquer caso, sejam observados os direitos dos demais sócios, em especial os minoritários, que, apesar de não exercerem poder de controle, também não têm direito de voto sobre o plano.
Do mesmo modo, a Lei 11.101/05 não estabelece como os instrumentos de reorganização trazidos no plano alternativo deverão interagir com os acordos de sócios. Como esse plano trabalhará o direito de preferência do acionista no aumento de capital? Como garantir que o acionista controlador irá renunciar ao seu direito de preferência? Como se estabelecerá o valor do aumento de capital, serão respeitadas as regras do acordo de sócios? Após estabelecido o aumento de capital, como ficaria a situação dos credores que não aceitassem a conversão da dívida em equity? Poderiam os acionistas alegar diluição injustificada de ações, uma vez apresentado plano sem tal previsão?
Enfim, é necessário que, durante o processo de recuperação, as regras que estruturam a governança do devedor sejam observadas. A existência de uma crise econômica não deve acarretar descuido das regras societárias que tutelam o interesse social [3], e assim o plano de recuperação apresentado por credores também deverá, de algum modo, contemplar tais disposições.
Sob outra perspectiva, a possibilidade de o plano apresentado pelo credor propor, como meio de recuperação judicial, o previsto no inciso XVIII, do artigo 50 da LRF, ou seja, a venda integral da devedora, cria-se uma discussão sobre o direito de propriedade, o que também é tema delicado para o qual a Lei 11.101/05 não chega a sugerir uma solução.
É sempre bom lembrar que o principal vetor do instituto da recuperação judicial é a preservação da atividade empresária viável, de modo que, por mais legítimos que sejam - e definitivamente o são - os interesses dos credores, não se pode negar que o seu foco é sempre a recuperação dos seus créditos e não propriamente da empresa. Há aí assimetria que deve ser levada em consideração para prevenir abusos.
Ao par disso, a Lei utiliza a expressão “plano de recuperação judicial proposto pelos credores”, o que inicialmente sugere que a comunidade creditícia é tratada como um bloco de interesses e que um único plano seria apresentado em conjunto. Porém, em recente caso de plano alternativo apresentado nos autos da recuperação judicial da Samarco Mineração S/A, verificou-se a apresentação de dois planos alternativos concomitantes - um pela classe I (credores trabalhistas) e outro apresentado pelos credores financeiros. Não contendo a lei previsões específicas que dêem solução para casos semelhantes, o tema foi, neste caso concreto, enfrentado com procedimento da mediação. É situação que muito possivelmente se repetirá em outros casos e caberá à jurisprudência tentar identificar o modo menos tumultuário para resolver tais impasses.
Para o efetivo balanceamento de interesses quando da interpretação da Lei 11.101/05, uma ferramenta que deve sempre ser considerada é o chamado Best Interest of Creditors’ Test [4], em análise semelhante à proposta para a conformação do princípio de preservação da empresa e os direitos dos credores. Assim é que o plano proposto pelos credores de maiorias necessárias não deveria ser aprovado se o pagamento estipulado a um credor interessado, ou mesmo credor que seja acionista, seja inferior ao que se receberia em caso de falência e/ou se aplique um tratamento discriminatório aos demais titulares de mesma natureza.
Seja como for, e com as dificuldades que a falta de melhor disciplina legal trará, o §4º do art. 56 apresenta uma nova lógica econômica em que a falência deixa de ser a única solução em hipótese de rejeição do plano do devedor em assembleia. Essa nova lógica traz, ao menos em tese, uma perspectiva de maior esforço da devedora pela menor oneração do credor quando da apresentação do plano de recuperação, preservando-se a empresa e zelando pelos interesses dos credores, essenciais para o processo recuperatório.
O pior cenário que adviria em um processo liquidatório – venda forçada de bens, perda de valor, a descontinuidade da operação empresarial, e principalmente nos olhos do credor, a iminência de não receber o seu crédito - fará o credor decidir no sentido de melhorar a sua posição, ainda que com pequena vantagem em relação ao cenário que enfrentaria na quebra.
A proposta dos credores deve, da mesma forma que se exige do plano do devedor, conter os requisitos elencados no art. 53 da LRF, como a apresentação dos meios de recuperação, a viabilidade econômica, laudo econômico-financeiro e avaliação dos bens ativos. O plano proposto por credores, para ser submetido à apreciação dos demais, deve contar com o apoio por escrito dos titulares de créditos que representem mais de 25% dos créditos totais sujeitos à recuperação judicial, ou mais de 35% dos créditos dos credores presentes à assembleia-geral em que o plano do devedor houver sido rejeitado (art. 56, §6º, da LRF).
Em sua essência, a apresentação de um plano alternativo pelos credores soa como benéfica por ser uma alternativa à falência, porém as lacunas, a ausência de arcabouço completo do procedimento e possibilidade de desdobramentos indesejados poderá ter um efeito danoso até que determinados pontos sejam pacificados. Caberá ao judiciário utilizar dos mecanismos já existentes – como no caso da recuperação da mineradora com a instauração da mediação – ou, criar novos mecanismos para modular os interesses de devedores e credores sem que prejudique a instituição do processo recuperacional.
Seja como for, há evolução da Lei e a instituição das regras (ainda que até certo ponto insuficientes) sobre a apresentação de planos pelos credores deve ser celebrada.
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