A crise instaurada pelo novo corona vírus fez com que os mecanismos de reestruturação ganhassem cada vez mais destaque. Nesse contexto, a Recuperação Judicial encabeça o rol de opções por ser a ferramenta mais eficaz para contornar a crise, renegociar as dívidas e evitar a falência de empresários para os quais, será árduo o desafio de sobreviver durante a pandemia.
Diferentemente da falência, na recuperação judicial não ocorre a indisponibilidade dos bens da empresa, que permanece no exercício da sua atividade sob a fiscalização de um administrador judicial nomeado pelo juiz. Nesse caso, os ativos circulantes seguem podendo ser comercializados [1]. Já para a venda dos ativos permanecentes, será necessária a autorização do juiz ou dos credores por meio do plano de recuperação, conforme veremos adiante.
Diante desse cenário, é crescente o interesse na aquisição dos chamados distressed assets que são ativos que pertencem à empresas em special situations, como é o caso das companhias em recuperação judicial.
Esse é um negócio que se mostra interessante tanto para compradores, que têm a oportunidade de adquirir bens com preços e condições comerciais mais atrativos, quanto para recuperandas, uma vez que a venda parcial de bens é um dos meios a serem utilizados para sua reestruturação e consequente pagamento dos credores sujeitos, conforme rol exemplificativo trazido pelo artigo 50, da LRF.
Segundo dados do primeiro Observatório da Insolvência [2], das recuperações judiciais com plano aprovado na comarca de São Paulo – SP, 35.5% têm venda ou aluguel de Unidade Produtiva Isolada (UPI) e, 53.2% têm venda ou aluguel de outros bens que não UPI, o que indica que a venda parcial de bens pode ser um dos principais meios de soerguimento de empresas em processo de recuperação judicial, em especial em razão da ausência de linhas de crédito específicas para empresas endividadas (DIP Financing).
Ao tratar da venda de bens do ativo permanente, a regra restritiva imposta pelo artigo 66, da LRF, permite apenas duas exceções: (I) quando prevista no plano aprovado, (II) nos casos em que demonstrada alienação mediante autorização judicial, uma vez reconhecida a sua efetiva utilidade para o processo recuperatório.
Nota-se que a expressão “efetiva utilidade” deve ser interpretada em consonância com o interesse público que rege o processo de recuperação e se adequa a casos nos quais demostrado que a venda de determinado bem, representará mais vantagem para a reorganização da empresa do que a sua preservação para que integre os negócios da recuperanda em caso de aprovação do plano ou, ainda, para que integre a massa falida no caso de sua rejeição.
Sobre a venda de bens mediante autorização judicial, o STJ vem sedimentando entendimento no sentido de que, uma vez reconhecida a utilidade e a urgência na alienação de bens integrantes do ativo permanente de empresa em recuperação judicial, não há necessidade de observância da sistemática prevista no artigo 142 (Leilão, proposta fechada ou pregão), da LRF [3], cabendo ao juiz autorizar a alienação de bens, sem qualquer formalidade específica, sempre que a prática desse ato contribuir para a reorganização da empresa e para a satisfação do direito dos credores.
Todavia, situação diversa se observa quando o bem a ser alienado são filiais ou unidades produtivas isoladas (UPI), cuja venda deve estar detalhada no plano aprovado e ser realizada através de leilão, por propostas fechadas ou por pregão.
Em que pese não haver jurisprudência consolidada sobre o tema, em especial nos tribunais inferiores, em recente julgado [4], o STJ entendeu que a regra do artigo 142, da LRF, que prevê a necessidade de venda por meio de hasta pública para alienação de UPI, pode ser flexibilizada quando for demonstrado que a venda de forma diversa daquela prevista em referido artigo é a única maneira de viabilizar a operação. No caso, além da autorização para venda direta foi garantida a proteção do adquirente, uma vez que estabelecido que este também não responderia pela sucessão fiscal e trabalhista, da mesma forma como ocorre nas vendas efetuadas nos termos do artigo 60, da LRF.
Referido precedente representa importante avanço para o processo de recuperação judicial, na medida em que, desde que mantida a transparência do procedimento, a venda direta e sem sucessão fiscal e trabalhista de unidades produtivas isoladas pode vir a tornar o processo recuperacional mais célere, pois possibilitaria, a título exemplificativo, o encerramento de diversas ações que aguardam apenas a venda judicial de ativos para serem finalizadas, procedimento notadamente moroso.
É certo que a Lei 11.0101/2005 possui diversos mecanismos de fiscalização e controle dos negócios praticados pela empresa devedora, a fim de que não sejam frustrados os interesses dos credores e seja alcançado o seu objetivo precípuo, viabilizando a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor e todos os benefícios advindos.
Na prática, a alienação de bens é uma das formas mais eficazes de captação de recursos a serem destinados tanto para a redução do passivo, quanto para alavancagem de capital de giro e, nesse contexto, pode ser um mecanismo fundamental para tornar efetivamente viável o cumprimento do plano de recuperação, sendo que, por vezes, o sucesso da recuperação judicial está muito mais vinculado à utilização e destinação eficiente de ativos, do que à renegociação do passivo.
[1] O Observatório da Insolvência é uma iniciativa do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência - NEPI da PUCSP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ e tem o objetivo de levantar e analisar dados a respeito das empresas em crise que se dirigem ao Poder Judiciário para viabilizar meios de recuperação ou, em último caso, para serem liquidadas. Fonte: https://abj.org.br
[2] Nesse sentido o julgamento do Recurso Especial nº 1.783.068/SP, julgado em 05/02/2019.
[3] Recurso Especial nº 1.819.057/RJ, julgado em 10/03/2020.
[4] Recurso Especial nº 1.689.187/RJ, julgado em 05/05/2020.
Fonte: Camila Cartagena Espelocin, advogada da Cesar Peres Dulac Müller.