Durante a 2ª Guerra Mundial, depois de o navio brasileiro Taubaté ser bombardeado, no mar Mediterrâneo, por um avião da Força Aérea da Alemanha, o presidente da República Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei nº 4.166/1942, que determinava o bloqueio de bens de todos os súditos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) para garantir uma eventual reparação a danos causados ao Brasil.
O decreto afetou um lote de ações de propriedade da empresa de navegação alemã F. Laeisz, que, no século passado, transportava insumos para a produção de cervejas da Brahma, e que, há 116 anos, decidiu investir na cervejaria.
Parte das ações bloqueadas foi devolvida à F. Laeisz, depois de uma decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF), em 1975. Outra parte, mais especificamente 74.211.825 ações ordinárias da Ambev, dona da Brahma, foram redescobertas apenas nos anos 90.
A União reivindica as ações para si sob o argumento de que a empresa perdeu o direito de requisitar os papéis pelo decurso do tempo.
Em 2016, a Coordenação-Geral de Participações Societárias do Tesouro Nacional (COPAR-STN) enviou ofício ao Banco Bradesco determinando a eliminação do CNPJ vinculado à F. Laeisz e a transferência dos papéis para a União.
O processo contra a Ambev e a sentença
A F. Laeisz levou o caso ao Judiciário e pediu a condenação da Ambev para que a cervejaria lhe pague os dividendos a que teria direito. Por outro lado, a empresa brasileira argumenta que paira dúvida sobre a titularidade das ações e, consequentemente, sobre quem é o legítimo credor dos respectivos dividendos. O caso tramita na Justiça Federal paulista com o número 5020297-24.2018.4.03.6100.
O juiz Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, entendeu que os alemães estão com a razão e condenou a Ambev a pagar todos os dividendos, juros sobre o capital próprio ou qualquer outra forma de remuneração paga aos acionistas desde 10 de abril de 2012 referentes às 74.211.825 ações nominativas ordinárias em questão. Estima-se que o valor, que ainda será calculado na fase de liquidação, atualmente já supere R$ 300 milhões.
O magistrado considerou que a dúvida da Ambev quanto à propriedade das ações é “seletiva”, já que embora não tenha pagado os dividendos sob o argumento de que há incerteza quanto ao detentor dos títulos, “não teve qualquer dúvida em admitir a participação da autora [F. Laeisz] nas assembleias, na condição de titular dessas mesmas ações”.
No processo, Renato Feitoza Aragão Junior, advogado da União, alega que a empresa alemã perdeu o direito de solicitar para si as ações e, portanto, elas devem ser incorporadas ao patrimônio da União. “A decadência é um fato jurídico, que provoca a extinção do próprio direito pela inércia do seu titular, consolidando situações jurídicas, a fim de fazer valer o primado da segurança jurídica”, defende.
Junior argumenta que as ações da Ambev também já estariam definitivamente incorporadas ao patrimônio da União pela decorrência do prazo de usucapião. A tese é controversa mesmo entre os órgãos jurídicos da própria União.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por sua vez, no Parecer PGFN/CAF/2371/2008, entendeu que “a transferência ilegal da titularidade das ações por parte da Administração para ela mesma é tipicamente um ato nulo (não apenas anulável), que não gerou direitos para terceiros, mas sim, pelo contrário, confiscou o direito de propriedade dos legítimos donos das ações em questão”.
O juiz tem uma visão parecida. Pare ele, as alegações da União parecem “as argumentações que o lobo da fábula de Esopo apresentou ao cordeiro para justificar porque iria devorá-lo. Parece dizer: as ações são minhas, e pronto”.
Segundo o magistrado, o decreto de Getúlio Vargas apenas estabeleceu um gravame – retirado por um decreto posterior – que impedia a venda das ações, de forma que não houve apreensão dos títulos. “Se as ações não foram apreendidas seria ilógico pretender que o titular fosse pleitear a liberação do que apreendido não fora”, decidiu.
Além disso, diz o juiz, a inscrição no livro de “Registro de Ações Nominativas” é a formalidade essencial que comprova a propriedade justamente porque ela (a inscrição) não se dá de modo aleatório, mas reclama a existência de “documento hábil” (que fica arquivado na Companhia) a revelar o negócio jurídico subjacente ou a decisão judicial que, tomada em processo regular constitui o título aquisitivo.
Ou seja, escreve o magistrado, “enquanto não sobrevier DECISÃO JUDICIAL que declare a NULIDADE do registro, tem-se, ope legis, que o proprietário das ações nominativas é aquele cujo nome constar da inscrição no livro”. No caso, portanto, a dona das ações seria a F. Laeisz.
A Ambev havia considerado a sentença omissa e, em embargos de declaração, argumentou que o ofício encaminhado ao Bradesco em 2016, que determinou a transferência das ações para a União, continuaria produzindo efeitos diante do insucesso da apelação de um mandado de segurança impetrado pelos alemães, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com o número 1001586-16.2016.4.01.3400.
No dia 11 de dezembro, contudo, a F. Laeisz conseguiu um efeito suspensivo até o julgamento de embargos no mandado de segurança. Já no processo contra a Ambev, no dia 16 de dezembro, o juiz negou embargos de declaração da Ambev “uma vez que não busca a correção de eventual defeito da sentença, mas sim a alteração do resultado do julgamento”.
A decisão condenando a Ambev não produz efeitos imediatos e deverá ser obrigatoriamente revista pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região por envolver a Fazenda Pública. Posteriormente, o caso deve chegar aos tribunais superiores. Tudo indica que esta batalha processual ainda está longe de terminar.
Procurados, a Ambev e os escritórios Pinheiro Neto, que defende a F. Laeisz, e Mattos Filho, que defende a cervejaria brasileira, não quiseram se pronunciar.
Fonte: Kalleo Coura via Jota.