Segundo decisão do STF de dezembro, não recolhimento de ICMS de forma contumaz pode configurar crime.
Um dos mais importantes – e preocupantes, na opinião de tributaristas – precedentes firmados em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pode ter desdobramentos em 2020. Advogados aguardam a publicação do acórdão do caso no qual o plenário permitiu a criminalização do não recolhimento de ICMS, e adiantam que a ausência de uma definição sobre o que é um devedor contumaz pode prejudicar os contribuintes.
O precedente foi finalizado em dezembro do ano passado. Os ministros decidiram que o não pagamento de ICMS de forma contumaz e com dolo configura crime, tese que permite que sócios de companhias sejam responsabilizados criminalmente pelo não recolhimento do imposto.
Advogados que atuaram na causa, porém, apontam que apesar de o acórdão do caso não ter sido publicado, o Supremo pode ter deixado uma série de pontas soltas, que poderão motivar embargos de declaração. Especialistas que defenderam as partes e os amici curiae no processo apontam, por exemplo, que apesar de a tese firmada pelo plenário do STF citar o termo devedor contumaz, o conceito ainda não possui definição, e os magistrados tampouco deram indícios de que pretendiam fixar as balizas.
Prova do tamanho do problema está no próprio recurso analisado pelo Supremo, que envolve um casal de empresários de Santa Catarina que deixou de pagar ICMS por oito meses entre 2008 e 2010. Com correção e multa o valor devido pelos contribuintes é pouco superior a R$ 30 mil, e, para os advogados das partes, a tese firmada pelo Supremo não poderia ser aplicada ao caso concreto.
A situação pode colocar o Supremo frente a uma encruzilhada: não definir o conceito de devedor contumaz pode fazer com que milhares de contribuintes sejam perseguidos criminalmente. Tocar no assunto, por outro lado, poderia fazer com que o STF fosse criticado por supostamente estar legislando, principalmente pelo fato de tramitarem no Congresso projetos de lei com a intenção de definir o conceito de devedor contumaz.
Outro assunto que deve ser levantado em embargos é a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que tornou crime o não recolhimento de ICMS. Para as partes, seria necessário que o entendimento valesse “para frente”, ou seja, apenas após o julgamento do STF sobre o tema.
Sete a três
A discussão sobre a criminalização do não recolhimento de ICMS consta no RHC 163334, que teve como relator o ministro Luis Roberto Barroso. O processo envolve os sócios de uma confecção de roupas infantis de Brusque (SC), que deixaram de recolher o ICMS por oito meses e foram denunciados pelo Ministério Público estadual.
O caso chegou ao STF após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar que houve, no caso concreto, o crime de apropriação indébita tributária. O relator do caso, ministro Rogério Schietti, entendeu que mesmo que, como no caso concreto, o ICMS tenha sido declarado, o não recolhimento do tributo pode ensejar a punição.
No STF o julgamento foi realizado nos dias 12 e 18 de dezembro. Por sete votos a três foi definida a tese de que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”. O dispositivo define que é crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Ficaram vencidos, em relação ao mérito, os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. O último também ficou vencido em relação à tese, alegando que ela não poderia ser aplicada ao caso concreto.
“A tese conduz ao provimento, e não ao desprovimento do habeas corpus. […] A tese requer dolo, requer apropriação indébita, e não foi isso que o Ministério Público do Estado de Santa Catarina narrou”, afirmou o ministro no dia 18 de dezembro
Judiciário X Legislativo
Apesar de considerarem a visão do STF menos restritiva em comparação à posição tomada pelo STJ, já que há a menção aos termos dolo e devedor contumaz, tributaristas apontam que, mesmo com a publicação do acórdão, alguns assuntos podem ficar descobertos.
Segundo o advogado de uma das partes do processo, Igor Mauler Santiago, pode ser necessário o requerimento para que a tese fixada não seja aplicada ao caso concreto e que os conceitos presentes da tese sejam esclarecidos. “O que é contumaz e o que é dolo específico? Já que Supremo tomou esse caminho é preciso que defina esses critérios”, disse.
O advogado Odel Mikael Jean Antum, que defende um dos amici curiae do RHC, o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal, aponta que a exigência de dolo ou contumácia deverá ser comprovada em cada processo pelo Ministério Público daqui para frente. Ele aponta, ainda, o papel do Congresso em relação à definição de devedor contumaz. “Não caberia ao Supremo fazer esse tipo de conclusão. Essa conclusão é legislativa”, afirmou.
O assunto também está em discussão na Câmara dos Deputados, por meio do Projeto de Lei (PL) 1.646/19. A proposta, que aguarda parecer da comissão especial designada para analisar o tema, considera como “inadimplência substancial e reiterada de tributos” a existência de débitos com valor igual ou superior a R$ 15 milhões.
Em caso de inexistência de definição do assunto – seja pelo STF seja pelo Legislativo – Santiago acredita que a análise do que é um devedor contumaz será feita caso a caso pelo Judiciário. “Ao longo dos anos a jurisprudência vai se firmar nos tribunais, e até lá muita gente vai ser denunciada e condenada”, afirmou.
Sobre o assunto, o defensor público Thiago Yukio Guenka Campos, que defendeu a outra ré no RHC 163334, cita uma pesquisa feita pela entidade em processos analisados pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Segundo o levantamento, o número de processos criminais pelo não recolhimento de ICMS saltou de 93 em 2015 para 275 em 2019, representando um crescimento de 196%.
Além disso, entre 2018 e 2019, dos 462 processos criminais analisados pelo tribunal catarinense, a absolvição foi determinada em 0,64% dos casos. Em 90,90% houve condenação criminal, enquanto em 8,22% dos processos houve a prescrição.
Campos aponta outros dois temas que podem ser tratados em embargos de declaração ao RHC 163334: o fato de não estar caracterizado o dolo no caso concreto e a necessidade de modulação dos efeitos da decisão. Para ele, seria necessário que a tese do Supremo valesse apenas para casos posteriores à definição do critério pela Corte.
Fonte: Bárbara Mengardo via Jota.