Plano alternativo de credores na recuperação judicial de produtores rurais
No 3º Congresso Cerealista Brasileiro, contribuímos para ampliar o debate sobre as alternativas disponíveis aos credores diante do avanço da recuperação judicial no agronegócio. A apresentação conduzida por Thomas Dulac Müller, sócio-diretor da CPDMA, destacou os principais pontos de atenção para cerealistas e demais agentes da cadeia, com foco na organização coletiva, na atuação estratégica em assembleias e nas possibilidades abertas pelo plano alternativo de credores.
Ao explorar aspectos práticos da legislação e da dinâmica de votações, o conteúdo busca oferecer uma visão clara e funcional sobre como proteger posições, reduzir riscos e estruturar soluções mais eficientes em cenários de reestruturação.
A seguir, disponibilizamos o texto completo apresentado no evento, com todos os detalhes, explicações e referências práticas:
No agronegócio de hoje, a recuperação judicial de produtor rural deixou de ser exceção e se tornou cenário recorrente. Para o cerealista credor, isso significa, na prática, duas consequências principais. A primeira é que uma parte relevante dos seus créditos pode ficar submetida à recuperação judicial, com suspensão de execuções, alongamento de prazos, deságios e incerteza sobre o fluxo de recebimento. A segunda é que, a partir do deferimento do processamento, a lógica deixa de ser “cada um por si” e passa a ser um jogo coletivo, regulado pela lei e decidido em assembleia de credores.
É justamente nesse ambiente que entra o plano alternativo de credores. Trata-se de um instrumento que permite a credores organizados, como um bloco de cerealistas, recusar planos draconianos e propor uma solução própria, inclusive com tomada de ativos e horizonte de saída muito mais curto.
A ideia aqui é explicar, em passos, como isso funciona na prática.
1. O que acontece quando o devedor entra em recuperação judicial e onde o crédito do cerealista entra nisso
Quando o juiz defere o processamento da recuperação judicial, passam a valer, em regra, três efeitos centrais previstos na Lei 11.101/2005, em especial nos artigos 6º e 49:
i. há a suspensão das ações e execuções individuais contra o devedor por 180 dias;
ii. ocorre o congelamento das condições dos créditos sujeitos à recuperação, a partir de uma linha de corte temporal definida pela lei; e
iii. o conflito deixa de ser tratado em execuções pulverizadas e passa a ser resolvido em uma lógica coletiva, por meio de plano e assembleia de credores.
Para o cerealista, esses efeitos se desdobram da seguinte forma: quando o crédito é concursal (por exemplo, lastreado em nota fiscal, contrato de fornecimento, conta-corrente mercantil, etc.) ele entra na RJ e passa a depender do plano aprovado. Já em hipóteses de crédito extraconcursal, expressamente previstas na legislação, existe a possibilidade de ficar fora da recuperação, com execução à parte.
É o caso, por exemplo, de determinadas operações estruturadas com CPR física vinculada a barter, em que a Lei da CPR (Lei 8.929/1994, art. 11, com a redação dada pela Lei 14.112/2020) passou a prever que os créditos e garantias não se submetem aos efeitos da recuperação e são tratados em regime próprio.
Na prática, muitos cerealistas têm carteiras mistas. Uma parte está protegida por estruturas e garantias mais robustas, enquanto outra fica travada dentro da RJ. É sobre essa parte sujeita à recuperação que o plano alternativo passa a ser uma ferramenta de proteção estratégica.
2. Da passividade à estratégia: o papel do credor depois de processada a RJ
Uma vez processada a recuperação, não basta reclamar do plano no corredor do fórum. Via de regra, o devedor apresentará um plano com alongamentos pesados, deságios relevantes, períodos de carência e horizonte de pagamento que pode chegar a 10, 15 ou 20 anos. O caminho real de proteção exige três movimentos: primeiro, entender em qual classe de crédito o cerealista está enquadrado, o que na maioria dos casos significa Classe II, III ou IV. Segundo, organizar-se com outros credores da mesma classe, especialmente outros cerealistas, cooperativas, fornecedores de insumos e instituições financeiras regionais. Terceiro, atuar de forma coordenada na Assembleia-Geral de Credores.
É na AGC que se decide se o plano do devedor será aprovado, rejeitado ou ajustado, e também se haverá espaço político e jurídico para abrir o caminho ao plano alternativo dos credores. Sem organização, cada cerealista atua como voto isolado, facilmente diluído em um processo conduzido pelo devedor e pelos grandes players financeiros. Com organização, o grupo se transforma em bloco relevante na assembleia, capaz de condicionar o resultado da votação e a própria dinâmica da negociação.
3. O que é, juridicamente, o plano alternativo de credores
A possibilidade de apresentação de plano alternativo pelos credores foi introduzida pela Lei 14.112/2020, que reformou a Lei 11.101/2005 e incluiu essa disciplina em dispositivos como o artigo 56. Em termos simplificados, a reforma abriu duas janelas em que os credores podem assumir o protagonismo da solução. A primeira janela aparece quando o plano do devedor é rejeitado pela assembleia. Nessa hipótese, em vez de o processo ir diretamente para a falência, a própria AGC pode deliberar pela concessão de um prazo de 30 dias para que os credores apresentem um plano alternativo. A segunda janela surge quando o plano do devedor não é deliberado dentro do prazo legal. Se expirar o período de suspensão das execuções sem que o plano tenha sido votado, a lei volta a facultar aos credores o espaço para apresentarem seu próprio plano, respeitados os requisitos legais.
Além disso, a legislação exige um apoio mínimo para que esse plano alternativo possa ser levado à votação. Em linhas gerais, esse apoio pode ser comprovado por meio de manifestação de mais de 25% do total dos créditos sujeitos à recuperação judicial ou de mais de 35% dos créditos presentes na assembleia em que o plano alternativo for discutido. Isso mostra que plano alternativo não é aventura. Ele exige um grupo de credores com peso real em valor de crédito e coordenação para formular, formalizar e articular a proposta dentro de prazos curtos.
A própria lei prevê que o plano apresentado pelos credores pode incluir capitalização de créditos, com conversão de dívida em participação societária, alteração do controle da sociedade devedora e organização da venda de ativos ou unidades produtivas, nos termos do artigo 56 da Lei 11.101/2005. A partir dessa base, é possível estruturar a destituição da atual administração, a entrada de novos gestores indicados pelos credores e mecanismos de controle mais rígidos sobre a gestão. Em termos econômicos, o plano alternativo é uma oportunidade para que os credores assumam o comando da solução quando o devedor insiste em um plano inviável ou abusivo.
4. Blocos de controle na AGC: massa inteligente em vez de plateia
Para os cerealistas, o ponto-chave é simples. Isolado, cada credor é passageiro. Organizado, o grupo passa a ser piloto ou, ao menos, copiloto na condução da recuperação. Formar blocos de controle na AGC significa mapear quem são os credores relevantes por classe, identificar outros cerealistas, cooperativas, tradings, bancos e fornecedores, e construir um alinhamento mínimo prévio sobre alguns pontos. Entre esses pontos, estão o que é aceitável em termos de prazo, deságio e garantias, e qual é a linha vermelha a partir da qual o grupo rejeita o plano apresentado pelo devedor e considera caminhar para o plano alternativo.
Com esse tipo de coordenação, o grupo de cerealistas pode, primeiro, influenciar a negociação do plano do devedor, ajustando condições ainda na fase de debates. Em segundo lugar, caso seja necessário, pode articular a rejeição do plano na assembleia, abrindo a porta processual para o plano alternativo. Em terceiro lugar, pode indicar membros para o Comitê de Credores e influenciar a condução cotidiana da recuperação, com maior fiscalização, exigência de informações e acompanhamento da gestão de ativos.
Esse bloco de credores deixa de ser massa de manobra e passa a funcionar como massa inteligente, com agenda própria. Essa agenda tende a incluir a preservação do valor econômico do crédito, a rejeição de alongamentos e deságios incompatíveis com a realidade de capital de giro do agro e, em certos casos, a tomada de ativos que interessam diretamente à cadeia, como silos, armazéns, unidades industriais e estruturas de originação.
5. Terceirizar a posição: o papel dos FIDCs
Nem todo cerealista quer ou pode estar na linha de frente de uma recuperação judicial. A legislação e a prática de mercado, no entanto, permitem que fundos especializados comprem créditos e assumam esse papel em nome do credor original. O Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, ou FIDC, é um veículo que aplica a maior parte do seu patrimônio em direitos creditórios, ou seja, em “contas a receber” de empresas. Hoje já é consolidada a atuação de FIDCs na compra de créditos de devedores em recuperação judicial, o que, na prática, forma um mercado secundário de recebíveis estressados.
No caso específico dos cerealistas, uma estratégia recorrente é a cessão do crédito sujeito à recuperação para um FIDC, com deságio negociado. A partir daí, o fundo passa a ser o credor formal. Ele conta, em geral, com equipe jurídica especializada, capacidade de concentrar posições comprando créditos de vários credores menores e peso para liderar a articulação de um plano alternativo, votando em bloco na assembleia.
Para o cerealista, esse movimento transforma um crédito judicializado, de difícil precificação e recebimento incerto, em liquidez imediata, ainda que com desconto, e terceiriza o desgaste de participar de assembleias, impugnar créditos, negociar plano, fiscalizar o devedor e acompanhar alienações de ativos. Para quem quer continuar no jogo, existe também a possibilidade de atuar em consórcio com gestor ou fundo, sem necessariamente vender toda a posição, combinando o crédito próprio com participação em veículo estruturado.
6. O plano alternativo como via de tomada de ativos e solução mais curta
Uma das grandes vantagens do plano alternativo é a possibilidade de mudar a lógica do jogo. Em vez de ficar preso a um plano do devedor com 20 anos de prazo, carência longa, deságio de 70% e baixa transparência na venda de ativos, os credores têm a oportunidade de desenhar um plano com prazo total mais curto, cronograma claro de realização de ativos e pagamentos, mecanismos de controle mais rígidos sobre gestão e fluxo de caixa e possibilidade de assumir, direta ou indiretamente, ativos estratégicos.
Com base na lei reformada, o plano alternativo pode prever capitalização de créditos, tornando credores sócios do negócio reestruturado, destituição da atual administração com entrada de novos gestores indicados pelos credores e organização da venda de unidades produtivas isoladas ou de ativos específicos. Essa venda pode ser dirigida a veículos controlados por credores ou a terceiros estratégicos, mas sempre dentro de regras competitivas e transparentes.
Para um grupo de cerealistas, isso pode significar transformar um cenário de calote alongado em um plano realista de três a cinco anos. Nesse plano, é possível estruturar a alienação ordenada de silos, estruturas industriais e bases regionais, atrelar contratos de fornecimento e até criar um novo veículo societário que passa a operar esses ativos, com participação direta dos credores.
Caso o plano alternativo não seja apresentado ou venha a ser rejeitado, a tendência legal é de convolação em falência, com liquidação desordenada e, em regra, resultado econômico pior para credores comerciais como os cerealistas. Em muitos casos, o plano alternativo é a última chance de solução organizada antes do cenário de falência.
7. Conclusão
Em linguagem direta, o crédito do cerealista pode, sim, ficar preso em uma recuperação judicial e ser alvo de propostas abusivas. Isso é um risco real. Mas não é verdade que a única saída seja aceitar o plano do devedor e torcer para dar certo. A legislação atual dá aos credores, especialmente aos que se organizam em bloco, o poder de rejeitar um plano ruim, propor um plano alternativo, assumir ativos e, em certos cenários, assumir o controle da companhia ou, se não for o caso, monetizar o crédito por meio da venda para FIDCs e outros investidores que assumem a linha de frente da reestruturação.
Para que isso seja viável, alguns passos são essenciais:
i. Mapear os créditos, separando o que é concursal do que é extraconcursal, identificando garantias e classificando cada crédito conforme a sua classe;
ii. Organizar previamente o bloco de cerealistas antes da assembleia, com pauta definida, alinhamento interno e limites claros de negociação; e
iii. Contar com assessoria especializada, jurídica e financeira, para estruturar um plano alternativo consistente, seja atuando diretamente, seja por meio de parceria ou cessão de créditos a fundos e investidores especializados.
Mais do que reação, esse movimento é estratégia. Em vez de apenas sofrer os efeitos da recuperação judicial, o cerealista passa a influenciar o desfecho do processo.
O conteúdo integral apresentado no Congresso — o mesmo que você encontra nesta página — também está disponível em formato PDF. Clique aqui para fazer o download.
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