Condenações do tipo serão ainda mais frequentes com a entrada em vigor da nova Lei de Franquias, segundo advogados.
Ex-franqueados têm sido condenados na Justiça ou em arbitragens por violar cláusulas de não concorrência estabelecidas nos contratos. Algumas decisões beneficiam redes como a Água Doce Cachaçaria, a Sóbrancelhas e a China in Box.
Elas estabelecem o fechamento das portas ou a suspensão das atividades de lojas que apenas trocaram de nome, mantendo os mesmos negócios. Condenações do tipo serão ainda mais frequentes, segundo advogados, com a entrada em vigor da nova Lei de Franquias (Lei no 13.966) no dia 26 de março. Isso porque o artigo 2o, inciso XV, alínea a, deixa mais ampla a proteção do “know how” fornecido pelo franqueador.
No Brasil, havia no fim do ano passado 2.916 marcas de franquias, com faturamento total de R$ 186,8 bilhões e que geram aproximadamente 1,3 milhão de empregos, segundo pesquisa prévia da Associação Brasileira de Franchising (ABF).
Um dos processos foi julgado recentemente pela 2a Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Os magistrados deram um prazo de cinco dias, sob pena de multa diária de R$ 2 mil, para uma franqueada da Água Doce Cachaçaria em Araras fechar as portas. Após a rescisão do contrato, ela continuou atuando no mesmo local, com cardápio parecido, sob o nome de Restaurante Santa Dose Gastronomia Brasileira (agravo de instrumento no 2166612- 30.2019.8.26.0000).
A franqueadora firmou o contrato em 30 de novembro de 2011, pelo período de cinco anos. Vencido o prazo, houve prorrogação. Porém, por falta de pagamento de royalties, além de outras taxas, a cachaçaria enviou notificação extrajudicial de rescisão em maio de 2018. “Contudo, o restaurante continuou exercendo a mesma atividade, no mesmo local, aproveitando do know how fornecido pela franqueadora. Mesmo com cláusula que o impedia de explorar atividade análoga por dois anos após rescisão do contrato”, diz a advogada Thaís Kurita, do Novoa Prado Advogados, que defende a franqueadora.
Para o relator do caso, desembargador José Araldo da Costa Telles, houve concorrência desleal “seja porque mantém-se o ramo de atividade restaurante seja porque o próprio título do estabelecimento configura concorrência, vedada por expressa disposição contratual, ao aludir a dose, expressão notoriamente atrelada à cachaça, produto de referência do nome empresarial da agravante”.
A decisão judicial já foi cumprida, segundo a advogada Fernanda Escobar, que assessora o ex-franqueado. De acordo com ela, a denominação Santa Dose em nada se assemelha à antiga. “Não houve e não há nenhuma espécie de concorrência desleal e ilícita. A alegação de que a Santa Dose estava comercializando produtos que são os carros-chefe de venda da Água Doce é inverídica”, diz. “As duas marcas são sem sombra de dúvidas diferentes, ou seja, partem de conceitos e cardápios diversos.”
O contrato de franquia, acrescenta a advogada, é totalmente abusivo e fere a dignidade da pessoa humana. “Praticamente impede o proprietário da empresa franqueada de trabalhar no ramo por dois anos, ou qualquer área gastronômica que a franquia julgue concorrência desleal”, afirma. Ela acrescenta que a mesma 2a Câmara Reservada de Direito Empresarial deu decisão contrária em um processo semelhante, que envolve outra ex-franqueada da mesma cachaçaria (processo no 1004672-39.2018.8.26.0637).
Uma franqueada da rede China In box também teve seu contrato interrompido, depois de ficar inadimplente com taxas. O contrato previa um prazo de dois anos de não concorrência. A franqueadora alegou no processo que, mesmo após notificação extrajudicial informando a rescisão, nada foi feito e que, além da utilização do seu know how e desvio da clientela, não seria mais possível garantir a procedência dos insumos utilizados para os pratos, o que poderia causar dano à imagem e reputação da marca.
No julgamento, os desembargadores da 1a Câmara Reservada de Direito Empresarial determinaram que a empresa não mais utilizasse o nome China In box e deixasse de imediato de fornecer qualquer produto ou serviço da marca. Da decisão já não cabe mais recurso. A franqueada não tem advogado no processo.
Também em São Paulo, uma franqueada com duas lojas da marca Sóbrancelhas, localizadas em shoppings em São Paulo, chegou a ser condenada em arbitragem a pagar R$ 300 mil por infringir as cláusulas de não concorrência. Elas previam que não poderia atuar no mesmo ramo por três anos. No caso, após receber treinamento, criaram sua própria rede de franquias, na vigência do contrato com a Sóbrancelhas.
Após a condenação arbitral, a franqueadora entrou com ação penal contra os donos da franqueada, com a alegação de que aliciaram clientes da marca para os seus novos salões. Eles acabaram condenados por crime de concorrência desleal, com detenção de três meses. O processo corre em segredo de justiça.
De acordo com a advogada Thaís Kurita, que tem atuado em nome de franqueadoras, entre elas a Água Doce Cachaçaria, Sóbrancelhas e China in Box, tem sido comum o descumprimento de cláusulas de não concorrência, principalmente nos casos com dívidas de royalties e taxas que desencadearam a rescisão dos contratos. Segundo ela, o TJ-SP tem mantido o cumprimento dessas cláusulas, desde que tenham sido redigidas de forma razoável. “Não dá para dizer que o franqueado não pode concorrer nunca mais no setor de alimentação, por exemplo. Tem que estar bem delimitado e com prazo razoável”, diz. “É preciso proteger a rede.”
Para o diretor jurídico da ABF, Fernando Tardioli, um dos pilares do contrato de franquia é justamente a transferência de know how. “Nenhum franqueado vai inaugurar sua unidade sem ser treinado pela franqueadora. Além disso, como a marca já é conhecida, ele tem que fazer um esforço menor para conquistar clientes”, afirma. Nesses casos, acrescenta, o cliente espera ser atendido indistintamente com o mesmo padrão, “seja em São Paulo ou Minas Gerais”, diz. Ele acrescenta que “a franqueadora tem seu método testado há anos e sabe como o produto e atendimento devem ser oferecidos.”
Fonte: Adriana Aguiar via Valor Econômico.