A prática do trabalho escravo é um dos assuntos mais em evidência na mídia e nos tribunais, por incrível que pareça, mesmo em pleno século XXI. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 20 milhões de pessoas em todo o mundo são vítimas da escravidão contemporânea.
Tradicionalmente, esse tipo de mão de obra é empregada em atividades econômicas desenvolvidas nas áreas de produção de carvão e no meio rural – na pecuária e nos cultivos de cana-de-açúcar, soja e algodão. Nos últimos anos, essa situação também tem sido verificada em centros urbanos, especialmente na indústria têxtil e construção civil. Infelizmente, há registros de trabalho escravo em todos os estados brasileiros.
No ordenamento jurídico brasileiro, o Código Penal, em seu artigo 149, estabelece pena de ‘‘reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência’’, para aquele que ‘‘reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto’’.
Ao contrário do que se imagina por escravidão, para configuração do crime do artigo 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção. Basta a submissão da vítima ‘‘a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva’’ ou ‘‘a condições degradantes de trabalho”.
Trabalho escravo contemporâneo consiste na superexploração do trabalhador por aquele que, ao tomar seus serviços, visando ao lucro máximo, nega-lhe os direitos fundamentais assegurados na Constituição da República, especialmente a sua dignidade.
Importante ressaltar aqui que não pode o trabalho escravo ser caracterizado por meras infrações trabalhistas, mas sim quando comprovado crime contra a dignidade do trabalhador. Todo ser humano nasce com os mesmos direitos fundamentais. Estes, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, aí sim temos caracterizado trabalho escravo.
Porém, as consequências na submissão do empregado a trabalho análogo ao de escravo não são somente criminais, já que a conduta também possui repercussão na Justiça do Trabalho. Ou seja, as empresas que se valem deste tipo de mão de obra estão sujeitas ao pagamento de indenizações altíssimas a título de dano moral coletivo.
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) publicou no dia 16/10/2017 a Portaria MT 1.129, na qual dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo a serem observados pelos auditores no momento das fiscalizações.
Como já dito, não é qualquer descumprimento de normas trabalhistas que gera a incidência do tipo previsto no artigo 149 do Código Penal. Apenas se incrimina a conduta que acarrete a ‘‘redução à condição análoga à de escravo’’, o que pressupõe total menosprezo à dignidade da pessoa humana na relação de trabalho. Naqueles casos em que este é prestado sem mínimas condições de higiene, saúde e segurança ou, ainda, em jornada extremamente exaustiva.
Condição degradante de trabalho é, pois, aquela que transcende o exercício regular do labor, é aquilo que humilha o trabalhador para além das condições peculiares à atividade em si.
Já a jornada exaustiva não se constitui naquelas simples horas extras, mesmo que habituais e corretamente remuneradas, e sim a que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade. Ou o impede de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal.
Para fins de reconhecimento do crime de redução à condição análoga à de escravo, e consequentemente condenação na justiça laboral, deve se exigir a comprovação de que a violação aos direitos do trabalho tenha sido intensa e persistente.
O mundo do trabalho está em constante transição. Assim, o magistrado deve, sopesando os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, adequar ou não a conduta patronal ao tipo penal descrito no artigo 149 do Código Penal.
Destaco que a Justiça do Trabalho não deve se ocupar de ofensas que não atinjam, com tamanha gravidade, o objeto jurídico tutelado – a dignidade do trabalhador. Em outras palavras, o Direito Penal só deve ser invocado como último recurso. Ou seja, somente a sujeição do trabalhador a condições absolutamente indignas, com a violação à própria dignidade humana, é que deve configurar trabalho em condições análogas à de escravo.
Fonte: Alice Romero, advogada da Cesar Peres Dulac Müller, é especialista em Processo e em Direito do Trabalho.