Supremo discutirá a validade da trava em decisão crucial para a sobrevivência das recuperandas na atual crise
Não é novidade que o Brasil atravessa uma das mais graves crises econômicas de sua história. São inúmeras empresas, em todos os cantos do país, de todos os portes e ramos de atividade, que têm lidado com reduções substanciais em seus faturamentos e que lutam, na medida do possível, para manter-se em dia nas obrigações com seus credores. No extremo desse cenário encontram-se as empresas em recuperação judicial, e o tratamento tributário oferecido pelo nosso sistema tributário a essas empresas na relação com o seu principal credor, o Fisco, não poderia ser mais prejudicial.
Há a perspectiva de julgamento no STF, no próximo dia 29 de maio, de um tema que é um dos maiores obstáculos ao soerguimento da empresa em recuperação judicial, qual seja, a validade da ‘trava de 30%’ sobre a utilização de prejuízos fiscais, sobre a qual discorreremos neste artigo.
Introduzida no ordenamento brasileiro pela Lei 11.101/2005 (Lei de Falências), a recuperação judicial é instrumento jurídico pelo qual se concede uma medida de preservação da empresa devedora, sendo preciso que se encontre uma equação entre os seus débitos e a sua recuperação financeira, de modo que lhe seja viável solver suas dívidas nos limites de suas condições de manutenção da operação e consequentemente, de sua sobrevivência econômica. Bastante comum que as dívidas fiscais sejam um componente relevante das dívidas da recuperanda.
Soma-se ainda a esse caldo dois agravantes. O primeiro refere-se à recente decisão da 3ª Seção do STJ que definiu que como crime o mero não-recolhimento de ICMS em operações próprias (ou seja, fora do ambiente de substituição tributária), independentemente da comprovação de dolo ou fraude. O segundo são os programas de parcelamento de débitos tributários: o parcelamento de débitos federais, instituído pela Lei 13.043/2014, é absolutamente ineficiente e, salvo raras exceções, a maioria dos estados e municípios sequer estabeleceram seus programas de parcelamento especiais. A missão da recuperanda não é nada fácil.
A partir do deferimento da recuperação judicial, normalmente decorre a concessão de descontos e reduções das dívidas por parte dos credores, que passam a ser assumidos pela empresa como condição para sanar seus débitos e ganhar fôlego para prosseguir com suas atividades, por meio dos chamados planos de recuperação.
Nesse ponto, ganha importância o impacto contábil-tributário relacionado à redução (também chamada de “hair cut”) dessas dívidas. Esses descontos geralmente são tratados contabilmente como “receita” e potencialmente, “lucro” pelas chamadas recuperandas, sujeitando-se à incidência de tributos como ocorre com qualquer outra empresa. O que deveria ser uma vantagem para a empresa em recuperação judicial, acaba por representar, na verdade, um aumento insustentável na sua carga tributária.
Pela legislação vigente, o lucro real apurado em cada período-base poderá ser reduzido pela compensação de prejuízos fiscais de períodos-base anteriores, em no máximo 30%, configurando assim a famigerada “trava”. Praticamente o mesmo tratamento fiscal se aplica à CSLL. O efeito da trava é especialmente dramático nas empresas em recuperação judicial, uma vez que quase sempre apresentam prejuízos vultosos e se veem obrigadas a recolher tributos sobre a renda em decorrência dos descontos obtidos quando da aprovação do tão esperado plano de recuperação, a despeito de mal possuírem condições de honrar as dívidas que garantiriam sua sobrevivência e os débitos tributários ‘correntes’.
Verifica-se um claro conflito entre a aplicação da legislação que determina a observância irrestrita da trava e a legislação que fundamenta a recuperação judicial, essa última fortemente baseada no princípio da preservação da atividade empresarial, a função social da empresa e da valorização do trabalho humano. Sob o ponto de vista econômico, a aplicação da trava sobre os ganhos auferidos em decorrência da recuperação judicial inviabiliza a continuidade da empresa, e por consequência a utilização do saldo remanescente de prejuízos fiscais.
Em importante precedente, o STF decidiu, em 2009, pela constitucionalidade da limitação da dedução de prejuízos no Recurso Extraordinário n° 344.994. No julgamento, o Tribunal firmou o entendimento de que o direito de abatimento de prejuízos fiscais acumulados em exercícios anteriores seria um mero instrumento de política tributária expressivo em benefício fiscal em favor do contribuinte e como tal, poderia ser manipulado pelo Poder Legislativo, tanto para ser amplamente concedido quanto para ser totalmente suprimido.
No âmbito dos tribunais administrativos, desde o advento da trava de 30% compensação de prejuízos e de bases negativas, trazido pela Lei 8.981/1995, surgiram discussões sobre a aplicação da limitação quantitativa, especialmente com relação aos casos de extinção da pessoa jurídica em virtude de incorporação ou cisão. Isso porque a legislação fiscal expressamente veda o aproveitamento de prejuízos fiscais da pessoa jurídica extinta pela empresa sucessora. Nesses casos, a trava dos 30% passaria a ser não uma restrição temporária, mas definitiva, considerando que o saldo de prejuízo fiscal não aproveitado até o período de apuração de extinção da empresa seria perdido.
Em termos gerais, as decisões do CARF vinham sendo majoritariamente favoráveis aos contribuintes até o advento da decisão do STF no RE 344.994/PR, momento a partir do qual o quadro passou a ser predominantemente desfavorável ao aproveitamento de 100% dos prejuízos fiscais no caso de extinção de pessoa jurídica.
Nesse contexto, vale recordar que, em dezembro de 2013, foi proferida decisão pelo ministro relator Marco Aurélio, reconhecendo que o recurso apresentado no RE 591.340 traz pontos que não foram analisados pelo STF no julgamento de 2009 e que deveria, portanto, ser apreciados, como a violação aos princípios da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e da isonomia. O julgamento do Recurso deverá ocorrer na sessão do dia 29 de maio de 2019 e poderá acarretar a superação do precedente firmado no julgamento do RE 344.994.
Portanto, a análise do tema pelo Supremo reabre a discussão sobre a validade da referida trava, configurando-se em julgamento importantíssimo para os contribuintes nesse momento de crise e crucial para empresas em recuperação judicial, que sabidamente não têm encontrado no sistema tributário nacional a devida proteção à sua revitalização.
Fonte: Rafael Serrano via Jota.